A inutilidade da literatura

A palestra era para um público heterogêneo e o assunto era a linguagem literária. A certa altura, querendo exemplificar (o que sempre dá uma melhorada nos conceitos mais abstratos), parodiei um poema:
Quem busca informação na literatura, ainda não busca a literatura. Foto: larrabetzutik.org/Flickr
“Certa mulher declara que nem se deu conta do envelhecimento e está perplexa por não se reconhecer, como conseqüência das mudanças causadas pela passagem do tempo.”

Em seguida li, da Cecília Meireles,

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios

nem o lábio amargo.

 

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.

 

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

– Em que espelho ficou perdida

a minha face?

 

Ao perguntar qual dois textos o público preferia, percebi algum constrangimento na plateia. As pessoas se remexiam na cadeira, olhavam-se de viés, mas ninguém ousava qualquer manifestação. Tive de insistir, muito vitorioso lá do alto do palco, para que alguém propusesse uma resposta. Finalmente, uma senhora um tanto idosa ousou levantar-se, sabe-se lá o tamanho de seu esforço, e a ouvi dizer que preferia o primeiro, porque era mais direto, mais claro e ela o entendia melhor. Minhas mãos gelaram suadas e percebi que a maioria das pessoas começou a olhar para os próprios pés. Felizmente ninguém me encarou com olhar zombeteiro.

Confesso que passei alguns segundos na angústia de não ter o que responder, atordoado com a surpresa. O inesperado sempre nos desmonta um pouco. E eu, no momento, estava não só desmontado, mas inteiramente destroçado.

Acho que depois de esvaziar o copo de água quase gelada e enxugar o suor da testa com as costas da mão (hoje não se usam mais os lenços de antigamente?) consegui articular algumas frases à guisa de argumentação, que deve ter seguido mais ou menos o raciocínio abaixo.

Duas considerações: A mulher, do primeiro texto, não existe, era uma invenção minha. Portanto, a informação não informa nada. Não é isso que se busca na literatura. O primeiro texto está escrito em linguagem de domínio social, comum a todos, por isso o entendimento imediato, mas não tem nada de original, não tem marca nenhuma de autoria. Não existe qualquer esforço na sua organização: uma linguagem automatizada. O segundo texto explora toda a virtualidade das palavras: a sonoridade, as combinações inusitadas, a interação entre elas que as potencializa. O segundo texto, por seus arranjos e combinações, pelo eco, pela delicadeza no modo de falar de sentimentos mais concretos, por tudo isso, é um texto que não serve para informar, mas para encantar. A autora é a Cecília Meireles, mas a narradora é uma entidade de sua criação que universaliza seus sentimentos pela poesia.

Quem busca informação na literatura, ainda não busca a literatura. Ela até pode eventualmente informar, mas não é sua especificidade. Como explicar aquele homem voando, no conto do Gabo, a quem pensa que literatura é instrumento de informação?

Enterrados em sua circunstância material, nem todos se encantam com a beleza.

Um excelente texto direto da Carta Capital, do Menalton Braff.

 

No escuro, com Clarice (crônica de Inês Pedrosa)

Tenho uma enorme dificuldade em começar o ano: o frenesim festivo angustia-me, não o entendo. Nunca consegui ser feliz por decreto, creio que é  por isso que tenho menos queixas da vida do que o comum dos portugueses. Não tenho um temperamento enevoado nem cultivo o cepticismo desamparado que serve de sedutor cenário ao pós-guerra da emancipação das mulheres: detesto gente lamurienta, gosto da festa quotidiana do amor e da alegria – por isso embirro com os rituais de festejo obrigatório: as doze passas (quem tem doze desejos assim tão organizadinhos e independentes?), o pé no ar, os abraços e beijos convencionais, o demónio das resmas de sms de pessoas que durante o resto do ano não querem saber se estou viva ou morta, tudo isso me dá cabo do juízo. E sobretudo mata-me os bons sentimentos, o que é triste e nem sequer é fado. Não podemos candidatar os bons sentimentos a património imaterial da humanidade? Sempre serviam para alguma coisa, porque para a literatura parece que deixaram de servir assim que o Cervantes morreu, o que me faz pena.

Assim, nesta passagem de ano, fugi para dentro do mundo de Clarice Lispector – um mundo de uma lucidez alucinante, que nos instiga a desbravar o tutano da vida. As frases de Clarice são relâmpagos que iluminam a mais bruta e profunda matéria do humano. Todos os seus livros são prodigiosos, no sentido literal: a cada releitura trazem novas descobertas – e, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é necessário ser-se «intelectual» para aceder a Clarice. É necessário, sim, ser-se uma coisa mais difícil: livre, como Clarice profundamente foi. Essa liberdade exige inocência, a capacidade de olhar para o já visto e já nomeado como se não o conhecêssemos. O dom da sua escrita é o de iluminar os objectos e os seres mais simples, interrogando-os para os entender, sem juízos prévios. A força da sua voz advém dessa inocência inexpugnável, valente, ilimitadamente ousada. Releio Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres porque é o mais perfeito e feliz livro que conheço sobre a paixão como conhecimento em crescendo e intensidade física que perdura – contra séculos de literatura que choram a sua tragédia e brevidade. Este romance não começa nem acaba: abre com uma vírgula e uma mulher excessivamente ocupada, termina com dois pontos depois dos quais Ulisses continuaria a dizer a Loreley o que estava a pensar. Deste modo, Clarice diz-nos que a conversa íntima entre dois amantes é infinita e particular – e diz-nos simultaneamente que o que se segue será da nossa responsabilidade, será o nosso livro, o nosso romance. Se todos podemos ser Ulisses e Loreley, cada um o será a seu modo – esta mistura de individualidade e impessoalidade extremas é a pedra de toque da modernidade global e fragmentária em que vivemos, e é também a qualidade suprema da escrita de Clarice: tudo aquilo de que ela fala nos rasga as entranhas, por muito estranho que pareça – e nessa estranheza entranhada a nossa alegria e a nossa dor são também a descoberta do mundo.

A vírgula, acumulativa, digressiva, buliçosa, sinaliza a mulher. Os dois pontos, defensivos, reflexivos, narcísicos, sinalizam o homem. O que se passa durante o romance é a aproximação entre estes dois mundos, até à fusão. A relação entre Loreley e Ulisses faz-se de silêncios, esperas, um trajecto de noite e solidão em que tudo o que ambos sabiam antes de se encontrarem se transfigura e prepara para a sabedoria maior do amor. O erotismo cresce, página a página, de um modo sinfónico perfeitamente orquestrado, até esse clímax em que os amantes «se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles». O que é raro e belo é que continuam ainda a amar-se, para lá da página e da pontuação. Em 2012, sei que Clarice estará ao meu lado, noite após noite, com o coração selvagem que nunca perdeu– e, afinal, só isso importa.

Crónica de Inês Pedrosa (segundo o anterior acordo ortográfico) publicada na edição de janeiro da LER. Achei aqui.

Biblioteca Digital Mundial

A gente já tinha contado desse projeto aqui, em abril de 2009. Agora, a Biblioteca Digital Mundial está muito mais completa, coisa que descobrimos no blog da Sonia Hirsch. Já é possível acessar antigos códices, pergaminhos digitalizados… enfim, para os curiosos e amantes da história é um prato cheio! E o melhor, já está disponível uma versão em português!

Não deixem de dar uma passada por lá… Para acessar os documentos históricos que fazem referência ao Brasil, vai direto aqui.